Disfarçando as evidências

0
8

A música “Evidências”, composta por José Augusto e Paulo Sergio Valle, ficou conhecida na voz de Chitãozinho e Xororó e é a mais cantada nos karaokês do Brasil. O que essa música tem de mais atual, para mim, está em um dos versos: “Disfarçando as evidências”.

Recebemos uma enxurrada de informações sobre medicamentos, pelas redes sociais e por veículos de imprensa, sendo que muitas são informações falsas ou, no mínimo, modificadas para insinuar que um medicamento possui uma ação que não é comprovada cientificamente.

Quando falamos de medicamento, são necessárias evidências científicas de segurança e eficácia para sustentar as indicações de uso. Em primeiro lugar, o medicamento não pode fazer mais mal do que a doença. É claro que não há um único medicamento destituído de efeitos adversos ou outros problemas, mas os efeitos adversos e a potencial toxicidade devem ser conhecidos e descritos na etapa de desenvolvimento do produto. O mesmo vale para o efeito farmacológico. É preciso reunir uma série de informações sobre a ação terapêutica, como a ação principal, ações secundárias, faixa de dose para se obter o efeito, duração do tratamento etc. Somente com a eficácia e a segurança comprovadas é que um medicamento obtém registro da autoridade sanitária (Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, no caso do Brasil).

Mas que tipo de documento comprova segurança e eficácia de um medicamento? Relatórios de pesquisas científicas. Mas não é qualquer pesquisa. É preciso que sejam pesquisas realizadas em seres humanos, chamadas de pesquisas clínicas ou estudos clínicos. Pesquisas em animais (as pré-clínicas) não podem ser utilizadas para sustentar um pedido de registro de medicamento.

Mas se as pesquisas com animais não têm serventia para a Anvisa, por que elas continuam a ocorrer? Por que é o primeiro passo (ou um dos primeiros) na trajetória em busca de um novo medicamento. O desenvolvimento de um medicamento segue algumas etapas até que ele esteja disponível em uma prateleira de farmácia.

Inicialmente, pensa-se em uma molécula com atividade biológica, que pode ser oriunda de produtos naturais ou ser sintetizada. Em alguns casos, são feitos testes preliminares (testes in vitro). Com a necessidade de avançar na pesquisa, são necessários testes in vivo e, para isso, são selecionados modelos animais que simulam a doença nos seres humanos. Os animais mais utilizados são camundongos e ratos. Essas espécies apresentam inúmeras vantagens, como um ciclo de vida relativamente curto, um organismo semelhante em muitos aspectos ao humano (por serem mamíferos), um pequeno porte (o que economiza tanto espaço para serem criados e mantidos como a quantidade de substância a ser testada) etc.

Se a molécula candidata a fármaco “passar” nos testes in vitro e no estudo pré-clínico, avança-se para a pesquisa em seres humanos. Mesmo com toda a semelhança que um organismo de outra espécie animal possa ter com a nossa, há diferenças substanciais que podem modificar totalmente a ação da substância, ou sua toxicidade, quando usada em pessoas, o que exige o estudo clínico. Testa-se a substância, geralmente, em duas a cinco mil pessoas, num período entre 6 e 18 meses. Se a substância apresentar segurança e eficácia também em seres humanos, finalmente o produto pode ser registrado na Anvisa.

O problema é que há muita prática criminosa de divulgação, como promover um produto cuja molécula só foi testada em animais ou apresentar um estudo científico com indicação divergente da apresentada ou, ainda, alegar problemas supostamente decorrentes do uso de um produto (medicamento ou vacina) a partir do relato de uma única pessoa (o que nada garante que o problema tenha sido causado por esse produto, já que o evento adverso pode ser decorrente de outros medicamentos utilizados ou pela própria evolução de uma doença de base, nem sempre diagnosticada). Portanto, para a sua segurança, e de toda a sua família, é preciso verificar se a pessoa que está divulgando supostas verdades não está apenas disfarçando as evidências.

Rodrigo Batista de Almeida

Professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR)